“Um dia histórico!”

No dia 26 de Julho de 2024 o governo, na pessoa do Primeiro-ministro, aludiu a esse dia como sendo um dia histórico devido aos anunciados maiores aumentos de sempre para os militares.
Numa apresentação de medidas socioprofissionais apoiadas pelos Chefes militares, fora da esfera de representação destes e desconhecendo-se se houve ou não negociação, e com larga cobertura mediática anunciaram-se medidas, algumas por arrasto de outros grupos profissionais, que chegam com anos de atraso, que mais não são que um “penso rápido” enquanto medidas puramente conjunturais, sendo notório os estragos profundos que foram já causados por esse atraso e inacção de sucessivos governos.
Não desvalorizando as medidas anunciadas assim como a sua justiça, ficam de fora medidas estruturais urgentes ao nível de carreiras, avaliações, assistência na doença, apoio social, formação e certificação profissional, cuja não resolução vai minar os objectivos declarados ao nível do recrutamento e retenção, indo nalguns casos criar novos problemas a juntar aos que já existem.
Tem dito o Ministro da Defesa Nacional que falou com os Chefes militares, que alguns deles já vieram a público mostrar a sua satisfação, colocando a tónica nesta relação de sintonia e objectivamente afastando as associações profissionais de militares de todo o processo, contrariamente ao que determina a Lei do associativismo militar, escudando-se em duas reuniões das associações com o Secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, que transmitiu nada ter a dizer, referindo apenas que em breve haveria novidades, mas escusando-se a revelar o que quer que fosse, dizendo até que não podia garantir que nos fossem fazer chegar algum projecto de lei ou sequer documento de trabalho, o que se veio a confirmar.
Tal atitude é um erro crasso. Convém recordar que na década de 80 do século passado, o General Soares Carneiro, então Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, declarou que não era chefe de nenhum sindicato dos militares. Tal declaração, para que fiquemos enquadrados, surge na sequência do então Ministro da Defesa Nacional, Fernando Nogueira, ter alterado as regras de escolha dos Chefes militares. Até então eram os Oficiais Generais que entre si seleccionavam três dos seus pares, para que o poder político escolhesse um deles. A partir daquela altura os Chefes militares passaram a ser escolhidos de forma autónoma sem levar obrigatóriamente em conta o seu prestígio no Ramo ou os seus conhecimentos militares, podendo inclusive utilizar critérios de escolha que pouco ou nada terão a ver com a natureza militar. Desta forma cria-se uma dependência do Chefe militar para com o governo, que necessáriamente e pelos mais variados motivos, condiciona a sua posição e cria uma evidente dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de contrariar ou oferecer oposição clara a medidas penalizadoras para os seus subordinados e para a própria Instituição Militar.
Esta percepção é de tal forma evidente, e restringindo-nos apenas aos aspectos socioprofissionais, que podemos facilmente constatar que sempre que os sucessivos governos cortaram de forma drástica direitos que decorriam da Lei das Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, destruindo a relação de equilíbrio entre deveres e direitos, com prejuízo destes últimos, a posição das chefias militares foi sempre de cobertura a essas medidas governamentais, chegando inclusive a usar a sua competência disciplinar, por iniciativa própria ou por intercedência do governo, para castigar militares que de forma leal e ordeira mostraram o seu desacordo com tais reduções de direitos, reduções essas que se vieram a revelar como altamente prejudiciais para o funcionamento das Forças Armadas (e que se tornam necessárias reverter), sem que, contudo, tivessem sido ou sejam apurados quaisquer culpados ou responsáveis por aquele desastre…
 Foi assim quando os militares pretenderam e conseguiram a criação do Estatudo dos Militares das Forças Armadas;
 Foi assim quando lutaram pela alteração do famigerado artigo 31º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, de 1982, conseguiram organizar-se em associações e obtiveram um conjunto de direitos de cidadania que até então lhes estavam vedados, como o direito de reunião, de associação, de petição e até de manifestação;
 Foi assim quando os Primeiros-Sargentos da Marinha lutaram e conseguiram ultrapassar a diferença de vencimento em relação ao posto de Cabo;
 Foi assim quando os Primeiros-Sargentos da Força Aérea e do Exército lutaram para ter o vencimento igual aos da Marinha e conseguiram;
 Foi assim quando os Sargentos e Praças das Forças Armadas lutaram e conseguiram a equiparação de vencimento em relação aos seus camaradas da GNR;
 Foi assim quando foram necessárias alterações estatutárias para terminar com diversas injustiças;
 Foi assim quando em sucessivos governos foram implementadas alterações drásticas e injustas nas regras de passagem à reserva e reforma, nas regras de cálculo das pensões e na redução das percentagens de contagem do tempo de serviço;
 Foi assim quando os militares passaram a ser inscritos na Segurança Social;
 Foi assim quando terminaram com as comparticipações de 75% para os medicamentos dos militares nas situações de Activo e Reserva e 100% para os militares na situação de Reforma;
 Foi assim quando alteraram o quadro de Assistência na Doença aos Militares (ADM) colocando-nos no enquadramento da Assistência na Doença aos Servidores do Estado e do Serviço Nacional de Saúde e passando a fazer descontos mensais para se usufruir de piores serviços;
 Foi assim quando o governo nos reduziu os dias de férias equiparando-nos aos trabalhadores do regime geral;
 Foi assim quando o governo procedeu ao fecho e concentração de todos os hospitais militares num só com dois pólos, com os efeitos negativos que todos nós conhecemos e muitos sentem na pele;
 Foi assim quando os descontos para a ADM passaram a incidir sobre a remuneração base e suplemento da condição militar, subsído de férias e de Natal;
 Foi assim quando os Chefes militares criaram o Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares das Forças Armadas (RAMMFA) com as consequências negativas que todos conhecemos;
 Foi assim quando o governo revogou o complemento de pensão de reforma para os militares que ingressaram até 31DEZ1989;
 Foi assim quando o governo extinguiu o Fundo de Pensões dos militares das Forças Armadas, depois de o terem arruinado por descapitalização;
 Foi assim quando os Chefes militares propuseram a criação do posto de Furriel para ingresso no Quadro Permanente (QP), o aumento dos tempos minímos de permanência no posto para promoção ao posto imediato e a promoção a Sargento-Ajudante por escolha;
 Foi assim quando lutámos e conseguimos reverter o ingresso no QP na categoria de Sargentos, com o posto de Segundo-Sargento.
Foi sempre assim… Tudo o que conseguimos foi sempre muito suado. Nunca contámos com o apoio daqueles que agora o governo pretende que sejam os nossos representantes socioprofissionais.
Se agora parece uma boa estratégia do Ministro da Defesa Nacional, ao arrepio de uma lei que o seu próprio partido votou favorávelmente, associar os Chefes militares às medidas apresentadas porque estas parecem ser favoráveis, é evidente que quando implementarem medidas prejudiciais para os militares, a sua associação aos Chefes militares, inevitável, terá efeitos negativos na sua autoridade, na sua capacidade de comando, e na forma como os subordinados os apreciarão.
Por esse motivo o associativismo militar representativo, para além de um direito democrático consagrado na lei, constitui igualmente uma defesa à imagem do Chefe militar, facto que em diversos países da Europa já foi reconhecido e adoptado, sem que se conheça algum decréscimo de operacionalidade ou aumento de indisciplina nas Forças Armadas desses países.
Assim, e em jeito de conclusão, o dia 26 de Julho de 2024 ficará efectivamente na História, sim, mas como o dia em que foi desferido o mais forte ataque ao associativismo militar socioprofissional representativo de que há memória desde a sua criação em 2001.
Isso não será esquecido, muito menos ignorado…
29/07/2024

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